Swissinfo entrevista o primeiro marido de Dilma
28/8/2014 20:21
Por Alexander Thoele, Swissinfo, de Berna
Por Alexander Thoele, Swissinfo, de Berna
O primeiro marido da atual presidente do Brasil, Cláudio Galeno Linhares, tem um longo passado na luta armada durante os anos da ditadura. Foi quando chegou até a sequestrar um avião e fugir para Cuba. Hoje o jornalista prefere ver sua vida como um espelho de um continente conturbado. Em entrevista à swissinfo, passa em revista os motivos que o levaram à clandestinidade.
Nos anos duros da ditadura militar no Brasil, seu casamento com a atual presidenta do Brasil foi apenas um pequeno e curto capítulo na vida dos dois. A biografia oficial de Dilma Rousseff no site da Presidência da República nem chega a citá-lo. Porém o jornalista Cláudio Galeno Linhares não se incomoda com esses detalhes da historiografia oficial ao olhar para trás e se lembrar de uma vida bastante agitada, o suficiente para preencher vários volumes.
Foram anos de participação na luta armada, quando chegou a sequestrar um avião da Cruzeiro do Sul junto com outros guerrilheiros em 1970, os vários anos na clandestinidade e passagem por países em plena revolução como Cuba, Bolívia, Chile e Nicarágua, e anos de exílio na Itália e França, para retornar ao Brasil no processo de democratização e ainda participar de governos.
Hoje aposentado e radicado há muitos anos em Manágua, Galeno visita uma vez por ano a filha e as netas em Bienne, uma cidade ao leste da capital suíça, Berna. Foi quando recebeu o repórter da Swissinfo para conversar sobre o passado de militante. Entre um cigarro e outro, sob o sol do verão na varanda de uma casa geminada nos subúrbios da cidade, o jornalista de 72 anos, não se esquivou de falar do seu relacionamento com a presidenta, com quem tem contato próximo até hoje.
- Você é o que podemos chamar de um típico mineiro?
- A minha família paterna e materna é originária de Itabira (100 quilômetros ao leste de Belo Horizonte). Eu nasci em Ferros, uma cidade próxima à Itabira, e passei a minha infância e adolescência nessa região. Meu pai era farmacêutico. Depois fui estudar em um colégio interno em Conceição do Mato Dentro dirigido por padres franciscanos. Foi uma boa experiência de vida. Depois fui para Belo Horizonte para estudar ciências sociais na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Belo Horizonte.
- Você começou a militar nessa época?
- Sim, sou um velho militante, eu e o Bakunin (risos). Eu era militante da Polop (n.r.: Organização Revolucionária Marxista Política Operária), um grupo à esquerda do Partido Comunista. A gente fazia aquelas análises sofisticadas em relação ao caráter da revolução brasileira. Tínhamos muita força no meio estudantil, cultural e alguma expressão operária. Após a renúncia de Jânio Quadros, em 1961, e logo depois a tentativa de golpe em 1961, houve então a campanha da legalidade, quando nos incorporamos à ideia do Brizola. Em 1964 fui então preso.
- Qual foi o motivo?
- Devido às minhas atividades clandestinas. A gente estava tentando aglutinar essas forças da marinha e do exército no Rio de Janeiro que haviam sido excluídas e expulsas. No meu caso, fui preso em junho de 1964, alguns meses depois do golpe. Primeiramente fiquei preso no porta-avião Minas Gerais. Depois na Ilha das Cobras e então no 1° Distrito Naval.
- E o que ocorreu depois? Quando foi libertado?
- Foi em novembro, graças a um habeas-corpus impetrado pelo advogado Sobral Pinto. Naquele momento a ditadura ainda não tinha fechado o Parlamento e não estava institucionalizada, ou seja, com todas as suas sutilezas, legais ou ilegais. Em dezembro no mesmo ano, uns agentes da marinha bateram na porta de casa. Por sorte não estava e fui para São Paulo. Aí entrei na clandestinidade. Depois, no final de 1966, regressei a Belo Horizonte. Não fui condenado e o processo acabou sendo arquivado. Então voltei a trabalhar para o jornal Última Hora como jornalista.
- E o que você fazia no jornal?
- Eu trabalhava em um caderno que saía no final de semana. Eram temas culturais, variedades e outros. Era uma equipe pequena, quase todo mundo de esquerda e que estava refugiada das outras grandes redações. Entre 1966 e 1968 a coisa começou a ficar preta.
- Foi nessa época que você conheceu a atual presidenta Dilma Rousseff? Li que vocês começaram a namorar assistindo um filme do Fellini…
- Sim, ela era militante do movimento estudantil. Não me lembro mais, mas é possível que tenha começado no cinema (risos). A gente frequentava muito o CEC, o Centro de Estudos Cinematográficos, em Belo Horizonte. Era um lugar onde passavam bastantes mostras temáticas como as do Fellini, a Nouvelle Vage francesa e até mesmo filmes japoneses, indianos, poloneses e outros. Coincidentemente, os grupos que frequentavam esse lugar eram de oposição à ditadura.
- E por que você e a Dilma decidiram casar? Era o sonho, afinal, de ter uma vida normal, burguesa?
- A gente se casou como se casa todo mundo: se apaixona, namora e pronto. Mas a minha geração já tinha rompido com essas tradições conservadoras de Belo Horizonte.
- Na época você tinha 25 anos e ela, 19. Você seria o teórico e ela a militante que seguia mais suas emoções?
- Não. Eu era apenas um militante a mais. Nós debatíamos muito. Eu era o mais velho daquele grupo de jovens, do qual fazia também parte o Fernando Pimentel, atual candidato ao governo de Minas Gerais. Como eu já tinha sido preso, talvez fosse como uma espécie de ficha marcada no movimento político da cidade.
- E qual era a proposta de seu grupo na época? Instigar uma revolução e instituir no Brasil uma ditadura do proletariado?
- Nós éramos socialistas de origem – sou até hoje. A gente acreditava que deveria haver uma revolução democrática do país. Tínhamos de mudar a forma de governo.
- Mas não através de eleições?
- Não havia a possibilidade de eleições, pois eles (os militares) as bloquearam. Apoiávamos o Jango. Você pode enfrentar uma ditadura através de uma revolução, como vimos atualmente com a Primavera Árabe. Eu não faço autocrítica disso. Acho que estávamos corretos…
- Porém a luta armada de esquerda no Brasil acabou fracassando. Por que ela mobilizou tão poucos brasileiros?
- Não conseguimos, de fato, mobilizar as pessoas. Éramos uma força muito pequena. Essa é a autocrítica que faço. O problema não foi ter faltado a linguagem, mas sim a força política. Éramos uma vanguarda, que desbravava e chegava a ter sucesso em outros países, mas no Brasil acabou não funcionando. Deu errado. Avaliamos mal a correlação de forças, politica e militarmente. Pelos menos, do ponto de vista político, chegamos a sensibilizar a opinião pública e levar a denúncia ao mundo.
- E afinal, qual foi o legado?
- Se você ver todos os personagens dessa época, descobre que muitos representantes da esquerda brasileira tiveram um papel importante na redemocratização e no fortalecimento da democracia após a ditadura.
- Porém o regime militar no Brasil justificou a repressão – e o AI-5, por exemplo – como uma resposta aos atos violentos cometidos por esses ativistas, como assaltos a bancos ou sequestros…
- Quando você está numa opção de luta armada, não pode escolher os cenários de luta, que eram definidos pela própria conjuntura. No nosso caso, do sequestro de avião, o fizemos para salvar a vida de companheiros que estavam presos. Não foi em vão! Na época eles mataram muita gente. E outras ações como as do Carlos Marighella, a Guerrilha do Araguaia, foram tentativas de resistir. É muito difícil rever o passado a partir de uma perspectiva diferente da vivida naquele momento. Era preciso ver o que ocorria nos quartéis, nas prisões, as formas de tortura, as nossas experiências nas prisões e os depoimentos que chegavam até nós. Tudo isso nos levava à conclusão que era precisa fazer algo e romper com o silêncio de cumplicidade dos meios de comunicação. Era preciso fazer coisas se destacar, de tal forma que isso permitisse lançar um manifesto público que fosse conhecido pela população brasileira.
- Foi quando você e outras pessoas sequestraram o avião 114 da Cruzeiro do Sul em 1° de janeiro de 1970?
- Depois desse evento já tive contato com o pessoal da tripulação. Muitos deles ainda estão vivos. Na época, não parecíamos para eles como terroristas. Éramos jovens, pessoas normais e que lhes trataram muito bem, pois não tínhamos nada contra eles. Meu pai, que era um homem muito conservador – não podendo ser considerado alguém de esquerda e que não apoiava essa ação – fez uma declaração, que me impactou na época, dizendo “não, ele está lutando; ele não é um terrorista, bandido”. Eu não fico tocando nesse assunto, pois são coisas que passaram.
- O que os motivou?
- Tinha um grupo, do qual fazia parte o Fausto Machado Freire, que havia sido preso na época, mas nenhum órgão da repressão reconhecia essa prisão. Nossa principal exigência era o reconhecimento, por parte da ditadura, de que essas pessoas estavam presas e sendo torturadas e que fosse permitida a visita a eles de membros da família e advogados.
- O objetivo foi depois alcançado?
- Sim.
- E então você quis ficar em Cuba?
- Não, meu negócio era o Brasil.
- Mas depois de uma ação dessas era quase impossível retornar…
- Mas não se eu fosse ficar na clandestinidade. Tentei retornar através do Uruguai, mas quando estava por lá apareceu um emissário dizendo que não podia mais voltar, pois a situação estava perigosa. Então fui para Bolívia. Quando cheguei, ocorreu logo depois o golpe do Torres (n.r.: Juan José Torres Gonzáles, que se tornou presidente em 7 de outubro de 1970). Cheguei dois dias depois do golpe e decidimos – nosso grupo, o VAR-Palmares, se comunicava entre si – que eu iria para o Chile.
- E como foi a vida no Chile?
- Era um momento muito bom no país. Eleito presidente em 1970 depois da vitória expressiva de um movimento popular, Salvador Allende proporcionava um ambiente muito propício para nós. Eram mais de cinco mil brasileiros que estavam por lá, ou mais. Havia pessoas como o Fernando Henrique Cardoso, a Dona Ruth ou também Darcy Ribeiro. Nós editávamos um boletim informativo chamado Frente Brasileira de Informações, no qual o José Serra era também o meu companheiro de redação. O boletim era apoiado pela irmã do Miguel Arraes que era casada com um diretor do Le Monde na França.
- Foi lá que você conheceu a sua atual esposa, uma nicaraguense?
- Lá conheci a Maira, que era uma líder estudantil na luta contra o Somoza (Anastasio Somoza Debayle, presidente da Nicarágua entre 1967 a 1972, e de 1974 a 1979). Ela havia participado de um ação de massa, ao entrar em um estádio de basebol com uma faixa escrita “No más Somoza”. Então ela foi ao Chile estudar e nós nos conhecemos e casamos. Foi no Chile que nasceu depois a nossa filha mais velha.
- E vocês depois de alguns anos, assim como vários outros exilados, tiveram que abandonar o Chile após o golpe militar de 1973?
- Saímos a toque de caixa através do Panamá, 20 dias depois, em uma operação apoiada pelas Nações Unidas. A nossa casa tinha sido invadida por forças de segurança chilenas e tudo foi destruído, inclusive com presença de brasileiros, ou pessoas que falavam o português. Felizmente a gente não estava mais por lá, pois já sabíamos do perigo. Passamos uns dias na casa de um amigo de longa data, o José Aníbal, que saiu há pouco da secretaria de Energia do governo estadual de São Paulo. No Panamá, o presidente era o general Omar Torrijos. O famoso Noriega era o ministro do Interior. Depois nos exilamos na Itália, onde nasceu a nossa segunda filha. Ficamos três anos por lá e depois mais quatro na França.
- Durante esse tempo você manteve contato com a Dilma?
- Ao sair da prisão, ela veio nos visitar na França. Na época já estava casada com o Carlos Araújo, que também é um grande amigo da família. Nosso contato é tão forte que as nossas filhas a chamam até hoje de tia Dilma. Somos avessos às convenções tradicionais. A esquerda não é tão apegada a essas coisas e por isso nosso relacionamento ainda é bastante forte.
- E depois da França vocês retornaram ao Brasil?
- A França nos deu refúgio político oficial. Tínhamos um laissez-passer e toda a documentação francesa como carta de trabalho ou de residência. Só retornamos ao Brasil em dezembro de 1979, alguns meses depois de promulgada a Lei da anistia.
- A readaptação no Brasil foi fácil?
- Passamos alguns anos em Porto Alegre, onde recebi uma oferta de emprego. Depois fui assessor de comunicação durante todo o primeiro governo do Leonel Brizola (1983 a 1987). Depois, quando o Moreira Franco ganhou as eleições, fiquei ainda um tempo trabalhando na Assembleia Legislativa e depois surgiu a decisão de retornar à Nicarágua, que era a grande reivindicação da minha mulher. Foi então que decidi mudar de país e estou até hoje por lá…
- Vocês chegaram à Nicarágua em plena guerra civil?
- Felizmente a guerra não afetava a vida em Manágua. A situação mais complicada era ao norte do país, na fronteira com Honduras.
- Você tem contato com a presidenta Dilma? Falam de política?
- Eu estive em 2011 em Brasília para prestigiar a posse de Dilma na Presidência. Vez ou outra nos falamos, mas não muito, pois ela nem tem tempo. São tantos amigos que, se todos pedissem uma audiência, ela não faria mais nada (risos).
- Se você pudesse conversar com ela sobre algo que, a seu ver, deveria ser feito absolutamente no Brasil, o que seria?
- A reforma política. É um tema muito complexo, que envolveria financiamento de partidos, a fidelidade partidária, o sistema de voto, da representatividade no Congresso e outros.
Alexander Thoele é jornalista na agência suíça de notícias Swissinfo.
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